Sempre falamos sobre a "Educação que damos aos nossos filhos", falamos sobre as crianças que deixaremos para o futuro, mas será que de fato estamos dando uma Educação de Excelência para as crianças?
Educação
: limites ou excelência
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"É preciso que os alunos saibam que há limites".
A expressão tornou-se um lugar-comum entre professores, educadores e pais
de jovens e adolescentes. Desconheço a origem desta máxima, entretanto,
a julgar pela freqüência com que é citada, parece ser uma diretriz muito
usada na esfera educacional. Lembro de ter ouvido a frase há anos, da
boca de um diretor de uma escola privada, ao comentar a dificuldade que
enfrentava para lidar com a bagunça que imperava no colégio que dirigia.
Recentemente uma educadora, autora de livro sobre
a adolescência, declarava em entrevista: “os jovens estão sendo mal orientados.
Os pais não estabelecem limites para os filhos, que crescem superprotegidos.
Sem haver aprendido que existem limites, os adolescentes se sentem livres
para fazer o que bem entendem”. O tema dos limites da educação já se popularizou
e recentemente a sentença “é preciso que os adolescentes saibam que há
limites” foi ao ar em jornal veiculado pela televisão em rede nacional.
A educação está sendo pautada por limites. Estabelecer
limites para a ação do jovem é algo assim como dizer: “você é livre e
deve administrar a sua liberdade. Não somos nós, pais e educadores, quem
deve impor nada a você. A grande conquista educacional da segunda metade
deste século é que você administre a própria liberdade dentro dos limites”.
Este ponto de vista pressupõe uma correção de rota em relação ao grito
que se ouvia em 68: “é proibido proibir”. Os jovens que na época repetiam
o slogan são hoje os pais que dizem aos seus filhos: “é preciso que vocês
saibam que há limites”.
De fato, sem limites, o comportamento da criança não seria muito distante daquele que mostra o nobel de literatura William Golding em seu romance As moscas. Crianças sobrevivem a um acidente aéreo em uma ilha deserta e precisam aprender a relacionar-se para sobreviver. O livro ilustra com requinte até onde pode chegar a crueldade de crianças sem educação ou orientação. Da liberdade ampla, geral e irrestrita houve uma evolução para a tese dos limites. As crianças e jovens devem saber que há limites.
Entretanto, em relação a limites, a curiosidade da
criança, a energia vital do jovem e a formação da personalidade do adolescente
faz com que se dirijam, até como auto-afirmação, às fronteiras do permitido.
Os pais e educadores podem dizer: “se eles não ultrapassarem os limites,
estaremos cumprindo a nossa missão, isto é, respeitar a liberdade individual,
a capacidade criativa e a iniciativa do jovem dentro de parâmetros de
comportamento”. De acordo com esta perspectiva, os filhos, os alunos e
os orientados estão sendo bem educados quando respeitem os limites. A
educação para os limites pode ser comparada à dos presos na Ilha do Diabo,
como aparece, por exemplo, no filme Papillon. Os adultos tratam os jovens
como a presos. Permitem a liberdade de movimento dentro dos limites, advertindo,
porém, que não devem ser ultrapassados. O mar é perigoso e o castigo pode
ser a própria morte. O perigo, porém, é atraente. Quem não se sente atraído
pelo limite? Quem não gosta de chegar perto do precipício para olhar o
mar batendo nas rochas? E mais ainda na juventude... Educar para os limites
é expor os jovens aos riscos dos limites.
Quais, porém, são os limites que os jovens devem respeitar
e os pais e educadores ensinar? O limite da vida é a morte, como mostra
a chacina de Denver, em que dois jovens armados assassinaram quinze pessoas,
pretendendo matar 500, e depois se suicidaram. O limite do trote dos veteranos
da Medicina da USP foi a morte de um calouro. O limite de levar a faculdade
“no limite” — só para passar — é tirar 4,8 e ser reprovado. O limite para
reprovar por faltas depende das escolas mas é freqüente que alunos universitários
sejam reprovados por faltas. O limite das experiências sexuais na adolescência,
antes do casamento, são a gravidez e as famosas DST (doenças sexualmente
transmissíveis), entre elas a AIDS. Quem vai até o limite pode sofrer
as conseqüências de uma gravidez ou paternidade indesejada, ou ainda de
uma doença venérea. O limite de usar uma só vez drogas, como simples experiência
de vida, pode ser o vício, o roubo para alimentar o vício, a prisão por
uso ou tráfico de drogas, ou mesmo a morte por overdose.
Educar para os limites é submeter a graves riscos
os jovens e adolescentes. A idéia que está por trás dos limites é que
a liberdade é um fim e não um meio. Diz-se: “o jovem é livre, mas não
deve ultrapassar o limite”. Falso. O jovem não é mais livre quando faz
o que quer dentro de determinadas fronteiras. O jovem exercita melhor
a sua liberdade quando escolhe dar o melhor de si, quando aspira à excelência
humana, quando aspira a coisas grandes.
A liberdade é um meio e não um fim. Um meio para poder fazer coisas maravilhosas ou arruinar-se como pessoa humana. Quando se faz da liberdade um fim o jovem e o não jovem torna-se um escravo da própria liberdade. É livre mas não sabe o que fazer com a liberdade. Retomando o exemplo da ilha. Não é mais livre o jovem que fica girando em torno dos precipícios sob o risco iminente de cair e bater a cabeça nas rochas ou morrer afogado. É mais livre quem usa a liberdade como um meio para construir coisas na ilha. Quem edifica uma casa para viver, quem se diverte subindo a uma montanha, quem cultiva uma horta que produz frutos... Ou seja, quem tem um projeto de vida atraente, seja no terreno científico, artístico, cultural, esportivo, etc.
A diferença entre educar para a liberdade como fim
e como meio está em ter um projeto vital. Cada pessoa é diferente e precisa
encontrar seu lugar no mundo. Educar é conduzir para fora (ex ducere)
o melhor de cada um. A missão do educador é descobrir o que há de melhor
em cada pessoa e estimular esse jovem para que cultive seus melhores dons.
Isso supõe saber que há um melhor e um pior, ou seja que há projetos vitais
que tornam felizes as pessoas, e modos de vida que escravizam e tornam
infelizes os outros. Em qualquer caso, o educador precisa saber mostrar
aos jovens quais as melhores aspirações que podem cultivar. A liberdade
é um dom que pode frutificar ou perder-se, mas nunca um fim em si.
A educação, por essa razão, não é apenas fixar limites,
mas orientar em direção a metas de excelência e objetivos no uso da liberdade.
Não é impor ou coagir a liberdade, mas canalizar a liberdade de modo que
frutifique em benefício dos outros e da própria pessoa. A criança, o jovem
e o adolescente precisam de uma orientação para se tornarem adultos e
poder empreender por si a própria vida. É uma arte complexa e delicada.
Cada pessoa é diferente. Orientar é ir soltando a linha até que um dia
os filhos, os alunos enfrentem o mar sozinhos, por conta própria, com
segurança e confiança. Em muitos casos o rumo que os filhos tomam na vida
não é responsabilidade dos pais, mas os pais têm obrigação de educar os
filhos. A educação que apenas fixa limites não parece ser a melhor receita
educativa para o desenvolvimento da personalidade dos filhos. No pólo
oposto à idéia de limites, a educação na Grécia clássica tinha um projeto
para o jovem e o adolescente. A educação — paidéia — grega estimulava
a excelência na formação do jovem, para que se desenvolvesse como pessoa
e alcançasse a maturidade humana e intelectual.
O historiador francês Henri Irénée Marrou, autor da
História da Educação na Antigüidade (São Paulo, E.P.U., 1975, p. 345),
comenta que o ideal da educação clássica era de ordem ética: tornar a
criança uma pessoa boa e bela: “Quando o grego menciona a formação da
infância é antes de tudo e essencialmente, a formação moral”. Em lugar
de fixar limites procura levar ao limite a idéia de educação. A paidéia
grega “não é apenas uma técnica própria para a criança que a equipa e
prepara desde cedo para tornar-se um homem (...) a mesma palavra em grego
helenístico serve para designar o resultado desse esforço, continuando
para além dos anos escolares (...) e vem a significar cultura no sentido
perfetivo que a palavra tem hoje entre nós: o estado de um espírito plenamente
desenvolvido, tendo desabrochado todas as suas virtualidades, a do homem
tornado verdadeiramente homem; é notável constatar que quando Varrão e
Cícero tiverem de traduzir paidéia preferirão dizer em latim humanitas”
(p.158).
Sócrates, um dos pilares da civilização grega e pai
de um legado fecundo, empenhou a própria vida na tarefa educativa. Acusado
de corromper a juventude e condenado por não compactuar com a injustiça
e a mentira, também tinha uma projeto educativo. Em sua defesa, registrada
pelo seu discípulo Platão, disse: “Outra coisa não faço senão andar por
aí persuadindo-vos, moços e velhos, a não cuidar tão aferradamente do
corpo e das riquezas, como de melhorar o mais possível a alma, dizendo-vos
que dos haveres não vem a virtude para os homens, mas da virtude vêm os
haveres e todos os outros bens particulares e públicos” (São Paulo: Abril
Cultural, 1985, p.15). Para Sócrates, mais importante do que a riqueza
era a virtude, e se dispôs a morrer por não faltar com a verdade do que
fazia e dizia. Selou seus ensinamentos com a própria morte. Aristóteles
também defendeu um projeto educativo na Ética a Nicômaco, seu mais importante
tratado de ética, dedicado ao filho. As pessoas agem procurando um bem,
comenta no primeiro capítulo, e o maior bem (que torna a pessoa feliz)
está na virtude: “a felicidade não está na diversão. Seria absurdo que
o fim do homem fosse a diversão e que o homem se afadigasse e padecesse
toda a vida por causa da diversão (...). A felicidade é uma atividade
de acordo com a virtude” (1176b).
A educação, para Aristóteles, não está em fixar limites
mas em ensinar e viver de acordo com a virtude. Essa perspectiva aplica-se
a todos, porém especialmente aos jovens, como manifesta este filósofo
no último capítulo da sua obra de Ética: “é difícil, quando se é jovem,
encontrar a direção reta para a virtude a não ser pela educação, porque
a vida moderada e dura não é agradável ao vulgo, e principalmente aos
jovens (1179b)”.
Viver de acordo com a virtude não é tão fácil nem
tão atraente quanto apenas fixar limites. A virtude é uma conquista da
excelência pelo treino e pelo esforço. Os frutos da virtude, porém, compensam
o esforço: “não devemos seguir os conselhos de alguns que dizem que, sendo
homens, devemos pensar somente humanamente e, sendo mortais, ocupar-nos
unicamente das coisas mortais, mas devemos, na medida do possível, imortalizar-nos
e fazer todo o esforço para viver de acordo com o mais excelente que há
em nós” (1177b).
José Maria Rodriguez Ramos é doutor em economia pela
USP e professor universitário
http://www.portaldafamilia.org/artigos/artigo003.shtml
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